quarta-feira, 17 de outubro de 2018

série
a impermanência do real
2017, josé

os olhos estremecem
e vão até à cegueira mais profunda
na saliva rarefeita da boca-

e são não o que vêem
mas a profecia pasmada nas coisas
a sua lenta deterioração
a escassa respiração do corpo

sei que enlouqueço
no cascalho nocturno dos pés
na feroz madrugada do que digo
e neste estar por dentro
do que em mim sangra

embora morto muitas vezes
é aqui que habito
na ardida cabeça do que disse
nas mil janelas abertas
com que saí de mim
e o rosto ah o rosto
obscuro e denso
minado e inútil
adormecido e escuro
pássaro cansado
na orfandade das mãos

abro a porta e saio
procuro sinais nas escadas
mas tudo está longe
na asfixia da garganta

talvez caiba agora na luz
uma outra sombra
a que agarra a mão da mãe
e dance num sorriso de amoras
no vestido brilhante
de quem ascende e diz
amo as tuas entranhas
desço e subo
ao enigma dos teus lábios
e diga palavras-talismãs
como se acordasse
no meio de uma multidão
e nela para sempre se perdesse

atravesso agora
o corpo que não tenho
assombro último de olhos mortos
2018, josé

música
John Cale - Hedda Gabler
Animal Justice EP (1977)
https://youtu.be/mVjYEQ2gYLM
Foto

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