sábado, 27 de outubro de 2018

f,j 2016

Posso ainda ouvir a voz serena, o silêncio sereno, a sabedoria serena destas duas senhoras, minhas companheiras na longa viagem entre Bishkek e Osh. Num táxi colectivo, nesse pequeno mundo de cinco passageiros, elas, o sobrinho delas, eu e o condutor, o mundo era um só: puro e absoluto, duma verdade límpida, humana.
E como elas ficaram felizes e rendidas, quando eu, no meu russo macarrónico disse:
все человек один мир! Todos os seres humanos, um só mundo!
E mais espantadas por lhes falar como gostava do escritor Chyngyz Aitmatov (Чыңгыз Айтматов) e do romance Jamila (Джамиля), que Louis Aragon considerava o mais belo livro do mundo,(e que eu e tu amávamos!) livro que li quando vagabundeava pela serra à volta da aldeia onde passava férias e quando escutava o balido dos rabastelhos e do meu corpo juvenil.
Muito mais se riram quando eu lhes disse que era um mankurt e invoquei a lenda da epopeia de Manas (Kyrgyz: Манас дастаны) e como Aitmatov falava dela nesse belíssimo livro "Um dia dura mais do que 100 anos".
Nessa longa viagem, em que íamos parando para comprar leite de égua, melancias (as belas melancias da Ásia Central e do Irão), queijos e muitas outras coisas simples de uma outra economia de que já perdemos memória, de uma economia nómada e de uma vida nómada, foi nela que eu li (sem ti, é verdade e como tu terias amado esse momento) verdadeiramente Jamila!
No olhar profundo destas duas mulheres conheci a Jamila que amei na adolescência, a Jamila livre e rebelde, a Jamila que colhe na terra, no ar, na água a vida e semeia sem medo a paixão absoluta.
Viajante já regressado a casa, só posso dizer, nas minhas palavras macarrónicas:все человек один мир!
O resto são cantos de quem vende guerras a prestações e olha para o mundo do pedestal sobranceiro do seu império.
j, 2017
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