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josé, 2018

quero ser cão
deitar-me no chão
rosnar na solidão
e morder a mão
que me diz não

quero ser cão
ladrar sem parar
na rua no inferno
ão ão ão ão ão
quer de inverno
quer de verão
quero levar vida de cão
ser cínico noite e dia
sim eu sei algo de filosofia
ou julgam que por ser cão
não tenho direito
a alguma erudição?

quero ser cão
cheirar a eito
viver a preceito
na mão que me afaga
até que me traga
um osso duro de roer
que é para eu saber
que a vida é danada
e não há nada a fazer
senão o corpo estender
e deixar passar a manada
lamber as feridas
e mandar as pulgas
parir para outras vidas-

o que é que julgas
não sou cão santinho
gosto de um copo de vinho
e na taberna escura
pisco e piso a cauda às cadelas
tanto faz feias ou belas
basta que haja uma que m' atura

quero ser cão
sem outra razão
que sendo eu cão
viverei a quatro patas
e serei um vira latas
que procura em cada esquina
a salvação e uma outra sina-

dêem-me vida de cão
e serei cão cartesiano
que de intuição em intuição
dirá hora a hora ano a ano
ladro logo resisto
e se isto nunca foi visto
então fugirei do canil
onde como eu vivem mais de mil

e será o início de uma revolução
desculpem, de uma nova revolucão
porque só um cão livre
rosnará autêntico e firme
a todos os açaimos a todas as coleiras
aos que de todas as maneiras
têm medo de cães de rua
senhores de uma vida pura e nua

quero ser cão
e não me digas não
se não estendo-me assim
até que me digas sim
e sejamos humanos por fim
cada qual na sua solidão
tu no teu humano quarteirão
e eu no meu canino chão
onde me estendo
e onde vou percebendo
que patas e pés
habitam o mesmo chão
e vivem os mesmos revezes!

ah como eu quero ser cão
e livre dormir no chão!
2018, josé

música
Leo Ferre - Je suis un chien -
https://youtu.be/pITtzTI3vkg